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"Eu, entre esquerda e direita, continuo preta"


O infeliz acontecimento do homicídio da vereadora Marielle Franco na cidade do Rio de Janeiro no último dia 14 do mês de março chocou diversos segmentos da sociedade brasileira e sensibilizou diversas personalidade e organizações no mundo todo, trazendo à luz, mais uma vez, o feroz estado de violência institucional de nossa jovem democracia. A execução sumária de pessoas que lutam a favor da justiça social é uma constante prática de proliferação do terror desde sempre em nossa formação social, e, por isso mesmo, sintomatiza nosso raquitismo democrático.
Desta constatação, emerge o pavor. As inúmeras análises sociológicas que interpretam e explicam a realidade nos chamam a atenção sobre os demais elementos interseccionais que compõe este violento cenário histórico: a questão da misoginia, do racismo estrutural e cultural, das desigualdades de classe, das hostilidades e negação dos Direitos Humanos.
E eu, no meu lugar e condição de mulher negra periférica, reflito sobre o legado que a trajetória e martírio de Marielle Franco representa para todas nós, o arquétipo da realidade que a mídia televisionada e o academicismo burguês insisti em negligenciar: a participação política das mulheres negras na resistência e construção social do Brasil.
Na prática, a democracia ocidental invisibiliza e negligencia o reconhecimento da cidadania das mulheres negras. Isso se dá desde a ausência de políticas públicas sociais básicas como a educação, saúde e segurança até a fomentação e criação de espaços e canais de participação política direta para as cidadãs negras.
Vamos retirar as vendas dos nossos olhos! As mulheres negras sempre estiveram nas trincheiras de resistências, lutas e criação de tecnologias sociais para subsistência e gerenciamento de relações sociais nas mais difíceis condições de empobrecimento e negligência estatal. Sustentaram e sustentam economicamente variadas redes de solidariedade e afeto onde a impunidade e o descaso governamental tem posto de honra.
A história milenar de Sifrá e Puá, as parteiras egípcias que resistiram às leis injustas e homicidas de Faraó (Êxodo 1) representam bem essa realidade de resistências e criação de tecnologias, que sustentam a defesa da vida e da verdade desde as bases.
Nós, mulheres negras, temos no cotidiano o espaço privilegiado de politização. Mesmo sendo este um lugar desprezado nas discussões e efetivações sobre democracia formal e participação política para as mulheres. Essa desqualificação do lugar de nossa prática política reforça os contornos de uma democracia incompleta ou inacabada, para não dizer, injusta.
Recordo que nesse movimento histórico de resistências, ergueram-se grandes lideranças femininas negras em torno das pautas postuladas pelos Direitos Humanos, como por exemplo, a ativista negra e protestante Coretta King, durante o contexto de luta pelos direitos civis e sociais nos Estados Unidos, na última metade do século XX, atuando desde a militância de base.
Cada vez mais, nós, mulheres negras, temos assimilado as regras do jogo político democrático, de tal maneira que nossa inserção nas estruturas de poder tem suscitado toda a violência de um mundo político machista, racista e misógino. Nossas vozes ecoam verdades que desnudam as mentiras dos maus.
Para não ficar apenas em minhas palavras, aponto o dossiê “A participação das Mulheres Negras nos Espaços de Poder”, que revela o severo quadro de assimetrias que marcam o processo que leva à ocupação dos espaços de poder, evidenciando a magnitude da exclusão das mulheres, e das negras em particular, da política institucional-formal, desde a República.
No decorrer do século XX, testemunhamos a emergência da organização reivindicatória das mulheres negras em torno do lugar de poder, onde as leis são feitas, onde as políticas são forjadas e onde se obstrui as decisões que mudariam substancialmente a realidade histórica de empobrecimento da população negra no país.
Hoje, colhemos os primeiros frutos de uma inserção cada vez maior de mulheres negras na política formal, de uma expressiva e qualitativa incidência de pautas sobre gênero, raça e política nos espaços acadêmicos. Essas direções nos levam a florescer os seguintes aspectos: a) a construção de uma democracia que tenha a cara de seu povo; b) a representação real das militâncias e resistências que já acontecem nas trincheiras das comunidades periféricas, possibilitando nova maneira de pensar e fazer democracia, num estado adoecido pela corrupção e reconhecido por sua violência.
E isso tudo não é e não será sem luta.
Marielle, minha irmã, nossas raízes são profundas, não seremos mortificadas. Nosso tronco firme nos sustenta, tua vida é seiva que nos alimenta para ocuparmos cada vez mais lugares de poder e resgatarmos a dignidade de nosso povo e de todas as mulheres negras.


*** Texto originalmente postado em https://ativismoprotestante.wordpress.com/2018/04/14/vanessa-barboza-eu-entre-esquerda-e-direita-continuo-preta/


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